Revista Imprensa - São Paulo, Agosto 2002

Fragmentos da utopia anárquica
Editado no Brasil segundo libro de Luther Blissett, autor que é, rigorosamente, uma lenda

Mariana Duccini


Da historiografia, herdamos a imagem da Alta Renascença como um dos perîodos fervilhantes da humanidade, do virtuosismo da razão e do abandono de dogmas. Cristalizadas na memória, as luzes e letras que logo motivaram os alemães a celebrarem o aufklarung, ou seja, todo o contexto que iria desaguar no iluminismo, movimento que teve na França e na Itália seus expoentes maximos. A própria Alemanha, no entanto, viveu, em pleno "cinque cento", uma guerra de motivações dignas do medievo. O monge Martin Lutero, após liderar a Reforma protestante, teria arrefecido, interessado que estava em manter alguns privilégios individuais, aliando-se a nobreza e até a alguns segmentos da Igreja Romana. Um exército de monges rebeldes - os hereges cristãos - saîa recrutando os miseráveis para a luta contra a "romanização" da Reforma: seriam eles os reais "eleitos", or merecedores do Paraíso.
A história desenrola-se primorosamente nas quasde 600 páginas de Q, o caçador de hereges, de Luther Blissett, editado, no Brasil, pela Conrad Livros.
Luther Blissett é uma lenda. No sentido literal do termo. Trata-se de um "autor coletivo", que surgiu na Europa, em 1994, assumindo a autoria de atos de subversão e obras libertárias. Foi caracterizado como um jogador de futebol, um romancista, um poeta, um dadaísta, um ativista de esquersa... A mensagem era clara: qualquer um de nós poderia incorporar Luther Blissett, desde que assumisse o repudio às convencões, negando-se a endossar o sistema. Antes, atentando contra ele. Foram célebres os "trotes" que pregava na imprensa, divulgando notícias falsas. Graças ao gusto pelo escândalo e pelo sensacionalismo, boa parte da midia européia comprava as versões de Blissett. Ponto para o terrorismo psíquico. Ponto para as investidas anárquicas.
Tão vigorosa é a obra que muitos chegaram a atribuir a autoria de Q, o caçador de hereges ao mestre Umbero Eco, que estaria assumindo uma das faces do Blissett. Embora tenha chegado ao Brasil somente este ano, o livro foi escrito na Itália, em 1999 - ano, aliás, em que houve o suicídio de Blissett, representando, talvez, a "burocratização" do movimento. Para almas anárquicas, antes a morte do que a domesticação. Como qualquer grande romance, a narrativa desenrola-se seguindo alguns parâmetros universais: una situação de equilíbrio, uma força exterior a perturbar tal equilíbrio, um herói investido de capacidade de lutar contra o elemento de ruptura. Um detalhe, no entanto, sepulta a composição narratológica tradicional: a ordem não é restaurada. Ainda que as determinações de nossos heróis sejam exaustivamente explicitadas, a "paz" parece um projeto inviável, uma vez que a luta constante é, em última instância, contra a iniqüidade, a impiedade, a intolerância - pragas que, mesmo momentaneamente debeladas, sempre econtram, no espírito humano, terreno fértil para voltarem a crescer viçosas.
O próprio herói sabe ser impiedoso, em nome de uma causa maior: a propagação de sua fé e de uma sociedade mais justa, em que o povo não precisasse de intermediários (ainda que respeitasse a figura dos profetas) para falar a Deus. São os ícones da escória, da marginália, aqueles que têm sobre os ombros o peso da opressão e decidem, em atos de trasgressão consciente, "roubar" azs rédeas da História. São, efetivamente, heróis, a despeito da crueldade. Lembram mesmo as odisséias vikings, os guerreiros expansionistas temidos pela violência, mas que carregavam intrinsecamente um sopro mítico, ancestral. Bebiam, nos crânios dos derrotados, os "tragos do Divino", no intuito de se tornarem cada vez mais fortes e poderosos. Presentificavam, dessa forma, o Sagrado.
As obras de Blissett - de todos os que tornam uno ao compartilharem das idéias subversivas - têm, ainda, a intensidade e a fugacidade das aventuras piratas, os lobos do mar que, entre saques e orgias, proclamavam a sociedade da liberatia, em que apenas o prazer era imperioso. Os mesmos que eram capazes de se autoaniquilar para não terem de se submeter à ordem e aos governos impostos, a tudo o que não fosse fluido, intuitivo, espontâneo.

[Parece a recensão de um outro livro, hein? Com certeza é a recensão de um outro livro :-)]


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