"Não há “depois da revolução”, o processo é contínuo, já começou..."
Entrevista com Roberto Bui / Wu Ming 1 - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 11/11/02
Entrevista e traduçâo por Fabio Salvatti e Antonio Vargas.


Você foi um membro do Projeto Luther Blissett e agora é membro da Fundação Wu Ming. Quais são as diferenças entre eles e porque houve uma “morte” do Projeto Luther Blissett e um “nascimento” da Fundação Wu Ming?

Wu Ming 1: Luther Blissett era uma network indiscriminadamente aberta. Qualquer um poderia usar o nome e adicionar elementos para a reputação desse herói imaginário que era Luther Blissett, uma espécie de “bandido” da era da informação ou “Robin Hood” da internet. Qualquer ação que se fizesse com o nome de Luther Blissett era automaticamente atribuída a ele como se fosse uma pessoa real. Cada ação, cada escrito, cada performance adicionava elementos e desenvolvia a reputação de Luther Blissett. Era uma incrível comunidade aberta. Na Itália, cerca de 400 pessoas usavam o nome, a maioria delas eu nem conheço pessoalmente, só mantemos contato via e-mail. Havia grupos em cada cidade. Em Bolonha havia um dos maiores grupos, com cerca de cinquenta pessoas. Basicamente, quase todo mundo poderia adotar o nome. Não havia um comitê central para filtrar a participação. Não havia regras escritas sobre como usar o nome. Só havia uma espécie de “autodefesa automática” da network. Por exemplo, fascistas ou nazistas não poderiam usar o nome para propósitos racistas, porque a network tinha um estilo, ainda que não fosse um estilo homogêneo. E, é claro, ser racista não fazia parte do estilo.
Desde o começo, em 1994, nós decidimos que Luther Blissett seria um plano qüinqüenal, de 1994 a 1999. Não exatamente Luther Blissett, mas o Projeto Luther Blissett. São duas coisas diferentes. O Projeto Luther Blissett era a network original, a network das pessoas que começaram a usar o nome no meio dos 90. Enquanto, por exemplo, as pessoas que usam o nome Luther Blissett agora não são parte do Projeto Luther Blisset, elas simplesmente são Luther Blissett. O Projeto Luther Blissett era uma das possíveis organizações de Luther Blissett. De qualquer maneira, o Projeto Luther Blissett estava planejado para terminar em 1999. Era uma paródia, uma caricatura da economia soviética, com os planos de cinco anos. E também porque cinco anos era tempo suficiente para se conseguir resultados, conquistas concretas, e não era tempo demais.
Em 1999 publicamos Q, que foi nossa última contribuição para Luther Blissett. O livro foi escrito por quatro membros do grupo de Bolonha do Projeto Luther Blissett. Teve um incrível sucesso. Vendeu 200 mil cópias na Itália e foi traduzido por todo o mundo. Os leitores na Itália ficaram surpresos porque Luther Blissett era famoso como uma coisa underground, como uma coisa à margem, radical, vanguarda, coisas assim. E Q teve um sucesso comercial mesmo no mainstream, mesmo que o conteúdo do romance fosse bem radical. Esta foi a última prova de que o Projeto Luther Blissett tinha que acabar, porque os quatro autores de Q estavam ficando famosos demais e todas as outras pessoas que estavam usando o nome de Luther Blissett estavam ameaçadas de serem imediatamente associadas com os autores de Q. Nós ficamos “pesados” demais. Então nós pensamos que fizemos a coisa certa quando pensamos em terminar o Projeto em 1999.
Então, em janeiro de 2000 nós começamos um novo projeto (os quatro autores de Q e outro autor chamado Riccardo, que escreveu romances de ficção científica na Itália, muito radicais pelo estilo e conteúdo) chamado Wu Ming. A diferença entre o Projeto Luther Blissett e Wu Ming é que Wu Ming é um grupo, não é indiscriminadamente aberto, porque escrever ficção é uma tarefa difícil. Vai haver uma história, com um começo, um fim e uma trama no meio. Então vai ser preciso trabalhar duro para escrevê-la. Não é fácil fazer isso. Somos um grupo de cinco pessoas, mas há toda uma comunidade ao nosso redor, nós cooperamos e colaboramos com um monte de gente. Nós temos um fanzine eletrônico chamado Giap, com mais de 3000 assinantes, que nos dão feedback e colaboram conosco. Wu Ming é um grupo, não é uma network, como o Projeto Luther Blissett. Essa é a principal diferença. Mas há coisas em comum: a recusa à propriedade intelectual, por exemplo, o fato de que não deixamos que nos fotografem ou nos filmem, nós não aparecemos na mídia. Nós aparecemos em público porque o nosso slogan (vocês o acharão no nosso website, na primeira página) é “transparente para os leitores, opaco para as mídias”, o que significa que aparecemos em público, não somos elitistas, aristocráticos. Nos últimos três anos, nós fizemos 150 palestras em público, sem fotógrafos ou cinegrafistas. E a outra coisa é o nome. Wu Ming em chinês significa “anônimo”. Então é uma referência ao projeto anterior. Há coisas que sobrevivem do projeto anterior, mas num outro contexto.


Quais foram os principais atos do Projeto Luther Blissett e da Wu Ming?

Os principais atos de Luther Blissett foram o que chamamos de “trotes de mídia”, guerrilha de comunicação, coisas assim. Nós começávamos “plantando” falsas notícias na mídia, com jornalistas acreditando que eram verdadeiras, e as publicando, e depois nós assumíamos a responsabilidade por elas. Algumas das ações tiveram um impacto considerável na Itália, e tivemos resultados concretos. Por exemplo, nós usamos este tipo de estratégia numa campanha de solidariedade contra a prisão de uma banda de garotos Heavy Metal. Em Bolonha, houve uma perseguição a essa banda que foi acusada de organizar rituais de magia negra, durante os quais algumas garotas e crianças teriam sido estupradas. Era algo como um ritual satânico com pedofilia. Mas era uma armação completa, não era verdade. Uma associação católica era quem os estava acusando, e um juiz aceitou a pressão desse grupo. Os integrantes da banda foram condenados a um ano e meio de prisão e foram criminalizados pela mídia. Era evidente que eles eram completamente inocentes. Não havia provas, não havia nem vítimas, só rumores, boatos. Então nós começamos uma campanha de solidariedade que não era tradicional, como abaixo-assinados, ou artigos na imprensa. Nós começamos a plantar na imprensa notícias falsas, ainda mais sensacionais e absurdas, contra a banda, que se chamava Bambini di Satana [Meninos de Satanás]. Era uma associação cultural esotérica de Heavy Metal, uma besteira assim, mas eles eram completamente inocentes. Nós fizemos acusações maiores, incríveis e absurdas. Por exemplo, nós inventamos um grupo de anti-satanistas. Eu roubei um crânio no cemitério, coloquei numa mochila e a deixei num armário da estação de trem de Bolonha. Eu peguei o ticket do armário e enviei para o principal jornal de Bolonha. Escrevi uma carta dizendo que se eles estavam interessados no caso da Children of Satan eles achariam coisas interessantes na mochila. O jornalista recebeu muito tempo depois o ticket, então ele teve que pagar o aluguel do armário por um mês, gastou um monte de dinheiro para pegar a mochila, e quando ele abriu, havia um crânio humano. No dia seguinte saiu uma foto do crânio na primeira página do jornal dizendo: “Anti-satanistas anônimos enviaram para o nosso jornal provas de atividades satânicas em Bolonha”. No outro dia, em outro jornal, nós revelamos que era tudo falso, que nós tínhamos roubado o crânio. Dissemos que aquilo era uma mentira, e que nós a inventamos. Mas nós inventamos uma. Quantas outras foram inventadas pelos jornalistas? Então as pessoas começaram a pensar a respeito. No fim a banda foi inocentada no julgamento e agora todos sabem que eles eram inocentes. Então nós tivemos resultados concretos nessa estratégia de guerrilha de comunicação. Mas a maioria das ações não era tão canalizada para um propósito específico. A maioria das ações era para espalhar a mitologia da existência de Luther Blissett.
Por exemplo, a primeira grande ação que fizemos foi quando inventamos um cara, um artista britânico. Inventamos sua vida, seus amigos, tiramos uma fotografia de uma casa em Londres e dissemos que era seu endereço. E nós ainda moldamos várias faces de fotos do meu tio com trinta anos e fizemos um rosto artificial, que depois virou o rosto de Luther Blissett. Nós enviamos para todas as agências de notícia essa foto e um texto dizendo que éramos amigos desse cara, desse artista, e ele estava em viagem pela Europa numa bicicleta com a intenção de escrever no mapa da Europa a palavra ART, conectando cidades. No final do T, ele estava perdido na Bósnia. Nós escrevemos isso e colocamos nossos telefones, perguntando se alguém tinha visto aquele homem, sua família estava preocupada, e nós também. A última vez que tínhamos ouvido falar dele, ele estava indo para a Bósnia. Seis meses depois não sabíamos o que tinha acontecido com ele. As agências de notícia enviaram a foto para os jornais publicarem na sessão de pessoas desaparecidas. A lenda se espalhou, porque esse cara teria sido um dos fundadores do Projeto Luther Blissett, todo dia a mídia era alimentada com um novo elemento da vida dele. Na televisão estatal italiana tem um programa chamado Chi l’ha visto? (Alguém o viu?), é um programa que procura por pessoas desaparecidas. Tem uma grande audiência, é no horário nobre. Nós recebemos um telefonema deles, dizendo que eles estavam interessados em cobrir o caso, e eles enviaram uma equipe de jornalistas para Bolonha, para nos entrevistar. Nós contamos toda a história, e dissemos que a última vez que ele esteve em contato com os italianos foi em Udine, no nordeste da Itália. Daí nós ligamos para alguns Luther Blissett de Udine e dissemos que a equipe de TV estava indo para lá, então que eles estivessem preparados para serem entrevistados e contarem um monte de besteiras. E foi o que eles fizeram. E o pessoal de Udine disse que o cara era de Londres, então se os jornalistas quisessem saber mais sobre ele deviam ir para Londres e entrevistar seus amigos. Daí, ligamos para algumas pessoas de Londres dizendo o que estávamos fazendo, e que os jornalistas italianos estavam indo para lá, e que eles deviam mostrar-lhes a casa onde o cara teria nascido, colocá-los em contato com seus amigos, então eles inventaram um monte de outras histórias sobre esse cara, e a equipe de TV foi pra Londres, entrevistou esses Luther Blissett e no final, quando estavam prestes a transmitir o programa (já haviam mandado os comunicados sobre o episódio para os jornais, em todo jornal havia um anúncio dizendo “Hoje no Chi l'ha visto o estranho caso do artista que desapareceu na Bósnia”), suspeitaram e checaram no Sistema de Pesquisa Anagráfico do Reino Unido e descobriram que esse cara não existia, mas todos os jornais haviam publicado a história. Então nós fizemos uma conferência de imprensa e revelamos que tudo era uma invenção e os jornalistas tinham gastado um monte de dinheiro de impostos italianos, um monte de dinheiro público, para sair pela Europa procurando por um homem que não existia. Eles nem tinham checado se ele existia realmente, eles imediatamente saíram por aí, procurando por ele. Esse foi o primeiro grande ato do Luther Blissett na Itália porque todos os jornais publicaram artigos a respeito. Daí houve uma reação em cadeia de trotes usando Luther Blissett por cinco anos.


O rosto do Luther

Como o da Naomi Campbell...

É, mas esse é verdade! É incrível porque é uma história verdadeira. Naomi Campbell estava em Bolonha para uma cirurgia plástica, para uma lipoaspiração. Quando os jornalistas do Il Resto de Cailino, que é o maior jornal de Bolonha ouviram os rumores eles imediatamente pensaram “Não, isso deve ser um trote do Luther Blissett, não pode ser verdade.” E eles publicaram como se fosse uma notícia falsa, mas era real. Eles estavam tão paranóicos no final que qualquer notícia podia ser falsa que eles confundiam as verdadeiras com as falsas. Isso era muito bom.


Eles provaram seu próprio veneno.


Absolutamente. É um pouco como homeopatia, acho que é saudável. Isso era Luther Blissett. Wu Ming é diferente porque Wu Ming é coletivo que trabalha contando histórias, mas de uma maneira diferente, porque as histórias que contamos são projetadas para serem publicadas em livros. Então nós continuamos contando histórias, como fizemos no Projeto Luther Blissett, mas agora estamos explorando um pouco mais os detalhes, um pouco mais profundamente o campo da literatura de ficção.


Wu Ming usa o termo copyleft para se referir a um novo jeito de tratar a propriedade intelectual. Quais são seus princípios?


A palavra copyleft foi inventada pelo Movimento de Software Livre, por Richard Stallman, nos anos 80. É o oposto de copyright, um copyright de esquerda. Foi uma grande inovação. Basicamente, o copyleft é um meio de defender o trabalho das pessoas mas sem impedir que outras pessoas o reproduzam ou copiem. Porque no Projeto Luther Blissett nós escrevíamos “sem copyright”. Mas não é o suficiente. Porque “sem copyright” significa que não há proteção possível para que, por exemplo, uma produtora cinematográfica, uma corporação, pegue a história e ganhe dinheiro só parasitando o nosso trabalho. Aí nós começamos a pensar no Movimento de Software Livre e entendemos que o copyleft é mais válido. A nota de copyleft é como a de copyright, mas abaixo dela está escrito que o autor desta obra permite sua livre reprodução somente para fins não-comerciais e somente se quem a utilizar não a colocar sob copyright. Isto significa que o copyleft, ao invés de ser um obstáculo para a reprodução, se torna uma garantia da reprodução. Porque é um direito inalienável. Significa “eu tenho o direito autoral sobre o texto e você não pode fazer nada para impedir que eu autorize outras pessoas a copiá-lo”. É um paradoxo, mas é um paradoxo muito fértil. Porque você pega a legislação existente sobre propriedade intelectual e a põe de cabeça para baixo, ou melhor, do lado direito para o esquerdo. Eu acho que esta é a melhor direção para a qual se mover e explorar, porque defende o trabalho. Uma produtora de cinema ou outra editora não pode pegar nossos livros e ganhar dinheiro com eles sem dar-nos parte desse dinheiro. Q, por exemplo, vendeu 200 mil cópias e várias produtoras se interessaram em filmá-lo. Se não houvesse nenhum tipo de proteção eles poderiam ter feito um filme, reforçar sua posição nos negócios de corporações e parasitar o nosso trabalho sem pagar dinheiro algum. Nesse caso, eles têm que negociar. Já as pessoas que não querem ganhar dinheiro sobre a obra podem copiar e usar o livro. Para fins não-comerciais a reprodução é gratuita


Porque vocês recusam o termo
artista para o escritor? Se pensarmos arte como Aristóteles, como uma techné, que significa “um modo de produzir algo”, não podemos usar o termo “artista” para a produção escrita?

Nós usamos o termo “arte”, mas no mesmo sentido que a “arte” dos artesãos. Se você for a um carpinteiro e pedir para que ele faça uma mesa, ele a faz. Se você vier até nós e pedir que nós contemos uma história, nós o faremos. Temos técnicas para isso. Isso é arte para nós. Nós nos chamamos de “artesãos da narrativa”, não “artistas”, porque pensamos que o termo “artista”, infelizmente, está mais relacionado a uma dimensão idealista, individualista de arte: inspiração, gênio, as musas, e outras coisas que fazem com que o artista de repente tenha uma iluminação, enclausurado em sua torre de marfim, comece a escrever compulsivamente, porque a musa está falando com ele, e o seu gênio está em contato com estágios elevados de consciência, toda aquela coisa romântica. Nós recusamos a superstição sobre a autoria, sobre contar histórias, sobre escrever, sobre arte. O termo “artesão” é mais concreto. Significa que eu posso fazer uma mesa, posso esculpir coisas na madeira, posso fazer um vaso de cerâmica, posso escrever um romance. É muito simples, não é teórico. Nós simplesmente pensamos que não somos gênios, que não somos melhores do que ninguém, só estamos tentando fazer nosso trabalho da melhor maneira possível. Não estamos em contato com estágios elevados de sensibilidade. Então não nos chamamos de artistas porque pode haver uma falta de entendimento do termo.



Quando vocês realizam suas ações, como as do Projeto Luther Blissett, elas não são semelhantes ao conceito romântico de artista?

Eu acho que não, porque sempre colocamos a ênfase na dimensão coletiva da realização da ação. É uma criação coletiva anônima, a qual qualquer um pode adicionar um elemento, um rumor, um pedaço da história. Isso não tem muito a ver com o conceito romântico de artista. É mais similar ao modo como a arte era antes das pessoas começarem a teorizá-la. Contar histórias era um ato coletivo nas épocas remotas. A Bíblia, o Mahabarata, a Ilíada e a Odisséia são resultados de uma contínua remanipulação coletiva de todo o patrimônio histórico. Não se consegue saber quem exatamente escreveu determinado livro da Bíblia. Acho que a nossa atividade no Projeto Luther Blissett e Wu Ming é mais parecida com o que a arte era antes de ganhar um “A” maiúsculo de reverência. A “arte” antes de ser “Arte”.


No livro “Mind Invaders” vocês mencionam o plágio como um caminho para a “condividualidade”. Como você concebe o plágio na cibercultura?

Plágio é uma definição ideológica que, para propósitos provocativos, a cultura underground tomou e começou a usar de maneira positiva. Plágio é um conceito definido por lei, é um crime. Os afro-americanos chamam uns aos outros de “nigger”, os ativistas homossexuais se chamam por “queer”, então nós nos chamamos de “plagiários, porque é a maneira com que o poder quer nos descrever.

Plágio é a maneira usual da evolução da cultura. A cultura não nasce do nada, de repente uma idéia brilhante, perfeita, vem à superfície e começa a se disseminar. Não é assim. Há sempre uma remanipulação, uma reconstrução de coisas que existiram antes, ou que existiram paralelamente. A cultura está completamente baseada no plágio. O progresso de idéias implica plágio. Porque todo mundo vive no mundo, envolto em realidade e se inspira em coisas que já existem. Ninguém cria nada do vácuo.
É um pouco absurdo que a legislação existente acha que o plágio é um crime, já que toda mundo plagia. Por exemplo, enquanto estou escrevendo um livro tenho conversas, vejo TV, encontro pessoas na rua, vou a concertos, etc. Guardo tudo isso inconscientemente ou semi-conscientemente, vou reelaborando e, de uma maneira ou outra, influencia o meu livro. Isso é plágio. É normal. Plágio é o progresso das idéias.


Tom Zé, um músico brasileiro, escreveu que “a era do autor e do compositor acabou”, e vê surgir a era do plagiocombinador. Você concorda? Como você vê essa manifestação na produção cultural atual?

Acho que ele está completamente certo. Em música, algumas pessoas usam o termo plunderphonics, que significa saquear, como os bárbaros que vinham às cidades e roubavam tudo. Na plunderphonic você toma dados e os reorganiza e cria algo novo das coisas preexistentes.
Não é uma característica exclusivamente atual. Sempre foi dessa maneira. Agora só é mais explícito porque há tecnologias de recombinação de informação, reprodução digital, compressão de arquivos, compartilhamento de conhecimento.
No entanto, se você pensar no Teatro Elisabetano, na Inglaterra, você pode comparar versões de várias peças e ver a recombinação de muitos elementos, transferidos de um lugar para outro. A razão é simples. Os dramaturgos se encontravam em pubs e discutiam suas peças. Há uma cena em “Shakespeare Apaixonado” em que Marlowe e Shakespeare se encontram num pub e começam a falar sobre o que estão escrevendo. Além disso, não havia distinção entre o autor e o ator. Shakespeare atuava nas peças que escrevia. Então ele continuava discutindo coisas com os outros atores durante os ensaios, o texto era constantemente modificado, com inspirações de outras peças que os atores tinham visto, ou peças que tinham lido. A “Comédia dos Erros”, de Shakespeare, por exemplo, tem exatamente o mesmo enredo que “Menecmi”, de Plauto, mas com variações brilhantes que criam algo diferente. “Menecmi”, por sua vez, é similar a “Fratelli”, de Terêncio, é mais ou menos o mesmo enredo. Essas duas peças passam pelo enredo da “Comédia dos Erros”. Provavelmente eles continuavam mudando referências durante as apresentações. O público normalmente gritava coisas como “esse personagem é chato, corte-o” ou “por que você não faz esse idiota morrer, eu o odeio”. Ele tomava as sugestões e continuava mudando o roteiro para as apresentações seguintes. O que temos agora, quando lemos Shakespeare, é apenas uma das muitas versões que foram achadas. É uma espécie de combinação que filologistas fizeram, mas é impossível se ter uma versão única das obras do Teatro Elisabetano.
Depois houve o romantismo, o academicismo, o idealismo na filosofia, houve também os interesses da indústria cultural no século XX para criar essa figura legendária do “autor”, como se fosse um indivíduo. Mas, antes disso, a criação era explicitamente baseada na plagiocombinação, porque não havia lei criminalizando isso. Toda a legislação de direitos autorais é muito recente. Duzentos anos, no máximo. Há muitos exemplos de tentativas de se criar uma legislação antes disso, mas a forma moderna de direito sobre propriedade intelectual não tem mais de duzentos anos. Antes disso a plagiocombinação era como a autoria de hoje, acontecia freqüentemente. Continuou acontecendo, mesmo depois, mas implicitamente, porque a lei impede o plágio. Agora, por causa das novas tecnologias, está se tornando explícito novamente. Mas não é novo.

Qual a sua opinião sobre fenômenos baseados na web, como o Linux e o Napster, por exemplo?

Primeiro, o Napster, não só o Napster, mas qualquer programa para compartilhar MP3 numa plataforma peer-to-peer, porque o Napster não existe mais (por exemplo, eu uso WinMX, e outras pessoas usam Kazaa). É outro exemplo de como o poder pode definir um conceito ideologicamente: pirataria. Isso não é pirataria, é uma reapropriação da cultura por pessoas que acham um absurdo que um CD custe 20 libras na Inglaterra. É incrível como é caro comprar música em todos os países. É claro que é proporcional a renda média da população. A indústria fonográfica é incapaz de compreender o que está por trás da pirataria. É uma necessidade, porque a música é inacreditavelmente cara e as pessoas querem ouvir música sem pagar esse preço. As gravadoras podiam ter feito algo para parar com a pirataria há três anos. Eles tinham que baixar os preços dos CDs e se contentar com lucros normais, ao invés de lucros incríveis. Mas eles queriam sugar o sangue dos consumidores, e não entenderam o que estava prestes a ocorrer. Eles achavam que para parar o Napster bastava mandar a polícia. O Napster foi barrado, mas a idéia de compartilhar conhecimento numa network de peer-to-peer se espalhou para todos os lugares. Se houvessem cortado os preços talvez não existisse a necessidade de se fazer download de músicas em MP3. Agora, é uma cobra comendo o próprio rabo. Já que as pessoas não estão comprando mais CDs, eles aumentam os preços. Acho que brevemente eles vão entrar em colapso. Eles estão se suicidando porque são estúpidos.
A coisa mais importante sobre o Linux, ou os Free Softwares e Open Sources é o copyleft. É uma inovação radical na maneira de se tratar a propriedade intelectual. Mas há outra coisa muito importante. Free Softwares e Open Sources são a prova de que produtos feitos por um monte de pessoas em cooperação são melhores do que produtos com copyrights. Na tecnologia de servidores de internet, Linux é muito melhor e mais confiável do que o Windows. As pessoas que programam o Windows são pagas para fazê-lo, não estão entusiasmadamente dedicadas ao trabalho. São simplesmente empregados. Enquanto isso, há uma grande comunidade de milhares de usuários que continuam melhorando o Linux, porque o copyleft as autoriza a fazê-lo. Então, se eles acharem um falha no software, eles podem arrumar a falha e enviar a solução. Essa é a prova de que trabalho comunitário, coletivo, colaborativo, faz um produto melhor do que a maneira usual, centralizada e corporativa de produção.


A revista brasileira Carta Capital escreveu, em 24 de abril de 2002, que Luther Blissett era o herdeiro da Internacional Situacionista de Guy Debord. O grupo fez uma nota no site dizendo que isso não era correto. Vocês tem um texto chamado “Guy Debord está morto”. Qual a conexão entre Wu Ming/Luther Blissett e Guy Debord?

Nós viemos de outro movimento, Centri Sociali Occupati, na Itália, viemos do Movimento Autonomia, da cultura underground. Não temos muito a ver com a visão aristocrática e elitista da Internacional Situacionista de Guy Debord. Por exemplo, todas as coisas de que falamos até agora seriam trabalhadas por Guy Debord como manifestações do Espetáculo, como reificação de coisas inúteis. Porque o Situacionismo nunca olhou para o lado positivo da produção da cultura. Eles sempre tiveram uma visão apocalíptica. É essa coisa da reificação! Tudo o que você fizer será reificado pelo capital. Uma teoria que fica te dizendo que tudo o que você faz é inútil é uma teoria reacionária. Nós achamos que uma teoria radical, uma teoria revolucionária, devia mostrar-lhe que as coisas são possíveis de se fazer. Mas o Situacionismo não é assim. O Situacionismo é herdeiro da dialética negativista da Escola de Frankfurt. A maioria dos situacionistas eram pessoas muito ricas, não estavam em contato com o dia-a-dia dos trabalhadores, de pessoas que dependiam dos resultados concretos da batalha. Então eles tinham essa idéia dândi e estética da batalha, ela deveria ser pura, não deveria ter um resultado concreto, porque todo resultado seria reificado pelo capital, incorporado no espetáculo, e usado contra você. Na Europa, o Situacionismo teve 30 anos de existência e nenhuma aplicação prática. Porque as pessoas que leram a teoria situacionista e gostaram, simplesmente passaram a escrever teoria situacionista. Então era só escrita, escrita, escrita... e nenhum envolvimento em conflitos reais, porque os conflitos reais seriam reificados... Eu estou pouco me fodendo para isso. Conflitos reais devem alcançar resultados que pessoas possam usar para viver melhor. Estou pouco me fodendo para a visão purista, aristocrática e apocalíptica.
Por isso, acho que Luther Blissett e Wu Ming não são pós-Situacionistas. Porque é um outro jeito de se olhar a realidade. Nós colocamos a ênfase no lado positivo da produção cultural, e não no lado negativo. Há uma frase de Adorno que é incrivelmente reacionária, e está em um de seus trabalhos mais famosos, “Mínima Moralia”, é uma coletânea de aforismos. Ele diz que nessa sociedade repressora, a emancipação do indivíduo é uma ameaça para o próprio indivíduo. É uma camisa de força, você não pode escapar. Então é completamente inútil. E o Situacionismo começou muito bem no final dos 50 e começo dos 60, falando de “construção de situações”, “reapropriação do dia-a-dia”, mas depois de 1962, começou a falar de “reificação” e “espetáculo” e se tornou o oposto da intenção inicial. Hoje em dia eu acho que é uma teoria que não tem utilidade prática.

Qual é a participação de Wu Ming no movimento de anti-globalização?

Wu Ming esteve diretamente envolvida desde o começo do movimento na Itália. A Itália é um laboratório de subversão muito interessante. Desde que o Projeto Luther Blissett saiu do Centri Sociali Occupati nós estamos envolvidos nas atividades do movimento. Nossa principal contribuição para o movimento é a contação de histórias. É a tentativa de contar as histórias certas, que façam as pessoas quererem lutar e continuar lutando. Não é simplesmente propaganda. Nós chamamos de mitopoiesis. Nós falamos sobre mitos, mas não no sentido de “histórias falsas”, mas no sentido de “histórias compartilhadas”. Histórias que pertencem a uma comunidade maior e que são constantemente remanipuladas pela própria comunidade.

É o mesmo sentido do termo que usam autores como Mircea Eliade e Campbell.

Exatamente. Vem da antropologia. Os antropologos dizem que a mitopoiesis foi uma fase muito antiga da história da humanidade. Nós acreditamos que a mitopoiesis continua acontecendo todo dia. Mitos do dia-a-dia. As histórias são reconstruídas, remanipuladas e colocadas em prática. Especialmente na nossa colaboração com os Tute Bianchi, que não existem mais, nós contávamos histórias, basicamente. Como aquele personagem do Asterix que acaba amarrado a uma árvore no final da história. O bardo. Nós éramos os bardos do movimento nos últimos três anos. A única diferença é que nunca fomos amarrados a uma árvore, as pessoas não corriam de nós quando começávamos a cantar e a contar a história, e participávamos dos banquetes no final da história. O bardo é um bom exemplo, porque em alguns vilarejos o bardo era o contador de histórias, era quem contava a epopéia da vila. Nós fizemos mais ou menos a mesma coisa com o movimento.
Um exemplo de mitopoiesis. Antes da manifestação em Gênova, nós escrevemos uma longa história sobre as mais radicais rebeliões da história da Europa, desde o século XIV. Era mais ou menos como a literatura de cordel. Era um poema épico, em verso livre, que começava no século XIV e acabava com o levante zapatista de 1994. Era a história de rebeliões camponesas e a narração dizia “nós somos novos, mas somos os mesmos de antes”, que é uma frase do subcomandante Marcos. Era a continuidade da luta desde o século XIV até Gênova. As pessoas ficaram abismadas: “Uau, eu não sabia! Há uma continuidade!”. Atores começaram a declamar a história nas ruas, foi lido em várias rádios livres por todo o país, foi publicada em vários fanzines, revistas e sites, foi traduzido para o espanhol, para o francês, para o inglês e começou a circular. E construiu um épico sobre “as razões pelas quais vamos para Gênova”. Era uma cobrança pelo que aconteceu no século XIV, no século XV, no século XVI, etc. Funcionou porque várias pessoas tomaram conhecimento do texto e foram pra Gênova. Elas se sentiram parte de uma comunidade maior, que não era apenas contemporânea, mas que incorporava os ancestrais. Era uma ironia, porque é claro que não há continuidade real, mas era um ato mitopoiético. A mídia oficial tentou descrever o movimento como coisa de comunistas, que as pessoas eram como aquelas dos anos setenta, forjando origens distorcidas do movimento. Então nós dissemos “nós somos as mesmas pessoas que no século XIV fizeram aquela rebelião...”. A mídia foi pega de surpresa.

Há uma bela frase no seu site que é “Essa revolução não tem rosto”. Se a revolução não tem rosto, como será o rosto do mundo depois da revolução?

Não há “depois da revolução”, o processo é contínuo, já começou. Você pode ver em certas partes da vida que já há pré-condições do que podemos chamar de anarquia, socialismo ou comunismo, você que sabe. Eu não acho que a revolução é algo que acontece de repente, do dia pra noite, e que no dia seguinte o mundo está diferente. Acho que isso é muito ingênuo. Eu acho que os Free Softwares, o movimento anti-globalização, tudo o que está acontecendo, nos mostra que a única possibilidade de evolução está na maneira mais solidária, coletiva, de se fazer as coisas, de se viver. Acho que a internet é um sintoma disso. A internet tem resistido a todas as alternativas de se comercializar. Há dez anos as pessoas falavam da internet apenas como uma maneira de se fazer negócios. Eles diziam que em alguns anos as grandes corporações iriam tomar o lugar das manifestações individuais na rede. Não aconteceu assim. Na verdade, a chamada “nova bolha da economia” explodiu, as corporações não puderam fazer lucro com a internet, e a internet ainda está lá, o acesso continua crescendo, os espaços individuais e horizontais ainda são a realidade da internet. A internet é um sucesso por causa dos fóruns, das listas de correspondência, dos chats, das networks de peer-to-peer, por causa disso. Não por causa dos sites das corporações, como a sony.com. Ninguém dá bola para a sony.com. As pessoas acessam a internet para se comunicar umas com as outras, não com as Corporações. Essa é uma boa prova do fato de que estamos evoluindo, ainda que lentamente e com contradições, para uma maneira mais coletiva, solidária, horizontal, de viver junto. É claro que é uma guerra. Nós temos inimigos. Temos Bush e outras pessoas que querem parar esse processo, mas o processo já começou. Não é algo que vai ocorrer no futuro. Está ocorrendo agora. Temos que entender isso e lutar.


Portuguese Main Menu