Zero Hora, "Cultura" [Segundo Caderno], sábado 7 de dezembro de 2002:

 

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A voz de uma revolução sem rosto
O Projeto Luther Blissett (o nome veio de um fracassado jogador do futebol inglês) pretende demonstrar a fragilidade da mídia, com a disseminação de noticias falsas - até em Porto Alegre. Chegou-se a atribuir o movimento ao escritor Umberto Eco.

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Subversão anônima
En tempos de Internet e de fama instantânea, um grupo de jovens intelectuais criou um personagem fictício - Luther Blissett -, causando furor na Itália e em outros países europeus

Durante cinco anos, a Europa e - em menor escala - o mundo forma varridos pelas travessuras de um personagem criado para ser o herói da Era da Informação. Usando o nome de um jogador de futebol que passou para a história como a pior contratação do clube italiano Milan, centenas de jovens se lançaram à produção e difusão de artigos, obras artísticas, livros e, principalmente, boatos, para escancarar a precariedade da estrutura midiática.
O projeto Luther Blissett, como ficou conhocido, teve sua principal célula em Bolonha, mas inspirou ações contestatórias e subversivas na Espanha, na França, na Alemanha, no México e, inclusive, no Brasil.
Cultura conversou com Roberto Bui, um dos principais integrantes do movimento - responsàvel tambàm pelo romance conjunto Q e por artigos subversivos incitando à guerrilha psicológica por meio da mídia. Bui, que hoje faz parte de um novo grupo de publicação coletiva de textos, denominado Wu Ming, esteve no Brasil e, em rápida passagem por Porto Alegre, proferiu uma palestra na qual falou sobre as obras, as teorias e as propostas do grupo, que prega a subversão coletiva e a resistência cultural.

Carlos André Moreira

Ele é escritor e integrou una conspiração virtual de proporçôes internacionais, mas à primeira vista o sujeito de estatura mediana, usando camiseta e óculos, cabelos loiros cortados rentes ao crânio e cavanhaque ralo lembra mais freqüentador do Garagem Hermética
[Lugar do Circuito underground. Rua Barros Cassal, 386, POA]. O italiano Roberto Bui, membro do chamado Projeto Luther Blissett, um movimento subversivo dos anos 90, passou o mês de novembro no Brasil, transitando entre São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis e Porto Alegre, em um misto de férias e turnê de divulgação.
Criado na Europa, o projeto Luther Blissett se desenvolveu com mais força na Itália, onde diversos ativistas e grupos autodenominados subversivos pregaram peças na mídia espalhando notícias falsas e lançando boatos. Ações assinadas com o nome de Luther Blissett - que se espalhou da Itália para Espanha, Alemanha e França. Em 1999, os italianos que participavam há mais tempo do projeto cometeram o suicídio simbólico do personagem via internet, mas em outros países o nome ainda é usado - já deu as caras até em Porto Alegre. Os idealizadores da identidade Luther Blissett escrevem sob o nome coletivo de Wu Ming - expressão chinesa que tem sido traduzida como "sem rosto" ou "sem nome".
As propostas dos grupos Blissett e Wu Ming são
tanto culturais como politicas. Os textos são assinados em grupo e provocam polêmica dos dois lados do espectro poliítico, como nos pontos que tratam da abolição dos direitos autoriais ou da supressão do indivíduo na ação política e criativa. Depois de algum tempo, o grupo resolveu lançar uma obra literária séria para fugir do estigma do escândalo gratuito e da brincadeira farsesca - uma obra para ser analisada por si mesma.
O resultado foi o romance Q, o Caçador de Hereges, escrito num periodo de três anos por quatro italianos de Bolonha - Bui entre eles. Além de Bui, participaram da criação coletiva Giovanni Cattabriga, Luca Di Meo e Federico Guglielmi. Os quatro se envolveram na pesquisa histórica necessária, no planejamento do enredo - feito à bases de reuniões e brainstormings - e na redação compartilhada.

O calhamaço de 600 páginas - lançado no Brasil este ano pela Conrad - traz uma história de revoluções, conspirações e lutas camponesas e religiosas no século 16, mais especificamente do 1517 (quando Lutero proclama suas 95 teses contra o papado) a 1555, ano em que Giovanni Pietro Carafa, personagem fundamental na trama, é eleito Papa Paulo IV.
A história, abertames dedicada aos coadjuvantes dos grandes fatos historicos, é narrada por um homem que troca diversas vezes de identitade enquanto participa das revoluções do periodo. Ao mesmo tempo, vai tomando conhecimento das maquinações de um terrível adversário, chamado apenas de Q, espião de Carafa. O romance é vibrante e repleto de ação, mas irregular em termos de ritmo. As melhores partes lembram féericas narrativas policiais, mas uma certa prolixidade trunca alguns trechos. Com o nome de Wu Ming, o grupo já lançou outro livro na Europa: 54, ainda sem data para publicação no Brasil.


Jogos, trapaças e um nome coletivo: as principais açoes do grupo Luther Blissett na Itália

1994 - Jornais de Bolonha começaram a receber una série de cartas informando que entranhas de animais haviam sido deixadas em lugares públicos da cidade, come ônibus, parques e estacionamentos. A imprensa dedica páginas inteiras ao que começa a chamar de "horrorismo", enquanto mais e mais cartas relatando encontro de visceras continuam a chegar aos jornais. Meses depois, uma correspondência assinada por Luther Blissett desmonta o acontencimento: todas as cartas eram flasas, escritas pelos próprios "horroristas", que assina a brincadeira como Luther Blissett.
1995 - Um programa italiano chamado Quem o viu?, especializado em encontrar pessoas desaparecidas, recebe uma carta informando o sumiço de um certo Harry Kipper, artista residente na Itália. A produção manda uma equipe verificar a história e colhe os depoimentos de vários "amigos de Harry Kipper". que dão informações sobre sua personalidade e levam a equipe a lugares freqüentados pelo desaparecido, de Bolonha a Londres. Minutos antes de a reportagem ir ao ar, a fraude édesmascarada: era outra brincadeira e os depoimentos eram falsos, prestados em combinação pelos arquitetos do trote. A foto de Kipper - que passa a ser o rosto "oficial" de Luther Blissett, foi obtida através de montagem cm retratos dos anos 20 de parentes de Roberto Bui.
1996 - A editora Mondadori lança um livro assinado e organizado por um jornalista chamado Giuseppe Genna: net.gener@tion. Genna teria trocado vários e-mails com "Blissett" para compor a obra, enviada pelo "múltiplo" pela Internet. No dia em que chega às livrarias, o livro é desmoralizado por correspondências de Luther Blissett às páginas dos jornais La Repubblica e Il Manifesto. Não passava de uma série de documentos falsos, absurdos e incoerentes retiradas da própria rede com o intuito de enganar o jornalista.
1997 - Em Viterbo começam a chegar à polícia e aos jornais ligaçóes anônimas alertando para a suposta realização de missas negras na cidade. Em seguida, as televisões recebem uma fita de video filmada a longa distância, com imagens escuras e pouco nítidas de um grupo com capuzes à luz de um archote e os gritos de uma mulher ao fundo. Várias emissoras exibem o vídeo com o ritual satânico. Uma semana depois, nova versão da fita chega à TV 7. Agora, com uma parte cortada na versão anterior: ao fim da "missa negra", a câmera dá um zoom e mostra nitidamente as figuras tirando seus capuzes, dançando uma tarantela e mostrando um pôster de Luther Blissett.


O personagem real


Sim, existiu um Luther Blissett original, atacante inglês negro, de origem jamaicana, que jogou do fim dos anos 70 ao início dos anos 90 no Watford, clune de pequena expressão na Liga Inglesa. Contratado pelo Milan como grande promessa de gols nos anos 80, tornou-se um dos fracassos mais retumbantes da história do campeonato italiano e foi devolvido ao Watford. Até hoje é considerado o maior goleador do time inglês (com 158 gols marcados entre 1972 e 1992) e ainda trabalha no clube, como auxiliar técnico. Ele se recusa a dar declarações sobre o fato de seu nome ter virado um ícone da contracultura.

 


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