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ESTADO DE S.PAULO
Domingo, 29 de junho de 2003

Romance mistura história e fantasia
'54', de Wu Ming (sem nome, em mandarim), faz sucesso na internet e nas livrarias

JOSÉ NÊUMMANE


O galã inglês Cary Grant era espião do M16 (serviço secreto britânico) e foi encarregado de ajudar no esforço anglo-americano de seduzir Josip Broz, o guerrilheiro e chefão comunista Tito, para a banda ocidental, convencendo-o a dar subsídios para uma superprodução de Hollywood sobre a resistência iugoslava aos invasores fascistas. Enquanto um sósia canadense fazia as vezes dele em Beverly Hills, o protagonista de Ladrão de Casaca, de Alfred Hitchcock, livrava-se, de forma rocambolesca, de uma tentativa de seqüestro pela KGB, com a ajuda de um rapaz italiano, que terminaria se envolvendo num tiroteio na fronteira com a França, ao participar de um transporte de contrabando de drogas a serviço do chefão mafioso Lucky Luciano. É mentira? Não! Isso é literatura - a ficção do futuro.

Essa mistura de fatos reais, dados culturais e fantasias mirabolantes já fora feita antes pelo argentino Jorge Luis Borges. Mas se Borges era muito sofisticado, os autores desse enredo fantástico são francamente folhetinescos. Eles são italianos e ninguém lhes conhece a identidade. Pois é: o primeiro parágrafo deste texto é uma canhestra tentativa de resumir o enredo de um livro, intitulado 54, que mistura dados históricos obtidos em pesquisa de sites na internet com delírios de fantasia de cinco escritores de Bolonha, sócios de uma fundação em cujo portal o internauta pode ler qualquer uma de suas obras. Fundação e coletivo são identificados por uma marca, Wu Ming, "sem nome", em mandarim, o mais falado dos dialetos chineses.

Compromisso com o prazer - A exemplo de Borges e do ex-promissor "foca" do New York Times Jayson Blair, os cinco escritores que se identificam por um signo que começa por negar a suprema vaidade literária da busca da fama pelo reconhecimento do nome, não têm compromisso nenhum com a verdade histórica. 54, última experiência desse "laboratório de criações literárias" (é assim que definem seu trabalho), é mais uma prova de que seu único compromisso é com o prazer do leitor. O objetivo é lhe tirar o fôlego fornecendo doses de ação e fantasia sobre um pano de fundo histórico.

O enredo se inicia em 1943, quando o capitão italiano Vittorio Capponi deserta e se alia aos guerrilheiros iugoslavos. Depois deste breve intróito, a ação do romance, lançado pela Einaldi num volume de mais de 500 páginas, se concentra no ano de 1954, abordando a guerra fria por ângulos que vão do conflito entre a KGB, o M16 e a CIA pela simpatia de Tito às conexões entre a indústria do entretenimento, a Máfia e os interesses geopolíticos do capitalismo anglo-americano. Personagens reais, como os já citados e mais as estrelas Grace Kelly e Frances Farmer e o senador Joe ??Mc Carthy, que se tornou famoso por sua cruzada anticomunista nos EUA, cruzam com outros inventados em situações óbvias ou absurdas, manipuladas pelos autores, que mantêm um estilo uniforme, sem denunciar eventuais diferenças entre eles.

Geléia geral intertextual - Além do ano da ação, referido no título, o texto recorre a cenários (Moscou, Bristol, Bolonha, Nápoles, Beverly Hills, Cannes, Trieste e Dubronik, entre outros) e datas da ação narrada como fios da meada para o leitor não perder o ponto da verdadeira geléia geral intertextual que lhe é dada a saborear. Os cinco escribas secretos do calhamaço tratam com sarcasmo a ajuda que o chefão mafioso Lucky Luciano deu para facilitar o desembarque aliado na Itália, durante a 2.ª Guerra Mundial, e se divertem abertamente com o jogo duplo de Tito, que faz americanos e britânicos imaginarem que está caindo em seu jogo, enquanto se reconcilia com os soviéticos, o que se tornou possível depois da morte do desafeto Josef Stalin. Eles se divertem até com os coleguinhas: são hilariantes as críticas que Cary Grant faz a James Bond, o fictício espião do M16 inventado pelo escritor Ian Fleming e que faria enorme sucesso de bilheteria no cinema.

54 está à disposição, gratuitamente, dos internautas no portal www.wumingfoundation.com, mas isso não impede que sua edição convencional traduzida para os outros países da União Européia seja um grande sucesso de vendas, caso aliás também dos outros lançamentos de Wu Ming (Havana Glam e Esta Revolução não Tem Rosto, por exemplo): a tradução de sua primeira obra, Q, para o inglês chegou ao topo da lista dos best-sellers no Reino Unido.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do 'Jornal da Tarde'