Cartacapital, 24 de abril de 2002 - Livros:

ETERNA HERESIA
Um romance histórico (e atual) sobre revolucionários e espiões no século XVI.

Q - O Caçador de Hereges, de Luther Blissett, Conrad (598 págs. R$ 55)


Por Antonio Luiz M.C. Costa

 

Quem aprecia romances históricos, como os de Gore Vidal e García Márquez, vai encontrar uma obra-prima do gênero, como também o fã de romances de espionagem ao estilo de John Le Carré e Robert Ludlum. Houve quem pensasse que seu verdadeiro autor era Umberto Eco, mas o estilo é muito diferente: sem perder tempo exibindo sua erudição, salta direto para o centro de ação, num dos periodos mais críticos da história do Ocidente.

O narrador de O Caçador de Hereges aderiu à vertente da reforma protestante que radicalizou a crítica de Lutero à Igreja Católica num ataque à autoridade do Estado e às classes sociais, em nome da fraternidade comunitária dos primerios cristãos.

Consegue sobreviver à captura e execução de seu líder Thomas Müntzer e ao esmagamento, pelos príncipes luteranos, da rebelião camponesa que havia levantado metade da Alemanha. Sob muitos nomes falsos, participa de outras agitações heréticas do século XVI, cada vez mais perseguido pelos inquisidores do Papa, de Lutero e de Calvino.

Suas apaixonadas memórias alternam-se com as cartas friamente calculistas de um espião, estrategista e agente provocador a serviço do poder, identificado apenas como Q, de Qohelet. É o nome hebraico do dogmático e conservador Eclesiastes, o livro que diz que "o que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol" (1:9). Seu destinatário é o poder encarnado pelo cardeal Carafa, que, depois de eleito papa Paulo IV, se tornaria o mais feroz e ortodoxo paladino de contra-reforma.

Sem deixar de respeitar os fatos históricos nem incorrer em anacronismos flagrantes, esse confronto representa a luta entre revolução e reação em qualquer tempo, inclusive no nosso. Onde se lê anabatistas, luteranos, tipografia, Carlos V e Fugger, também se poderia ler anarquistas, social-democratas, internet, George W. Bush e Merrill Lynch.

Os que lutam contra a globalização neoliberal vão reconhecer suas almas gêmeas e precursores nos hereges de há meio milênio. A obra é também um longo - mas fascinante - tratado teórico e prático de militância radical.

Seus autores são quatro dos, talvez milhares, que usaram em seus textos, ações o nome "Luther Blissett", marca não registrada de toda uma vertente de vanguardia italiana. Foi tomado emprestado a um jamaicano que jogou pelo Milan nos anos 80, em sinal de desprezo aos que o transformaram em alvo de piadas racistas.

A Operação Q foi a ação mais bem-sucedida desses herdeiros da Internacional Situacionista [this is not correct, N.d.WM] dos anos 60 e início dos 70. Foi um cavalo-de-tróia para invadir o mainstream cultural, um best seller atípico para obrigar a mídia a falar do projeto Luther Blissett pelo seu valor real e não como una simples travessura.

Consumada a façanha, as fileiras italianas resolveram renunciar ao pseudônimo para continuar o projeto com menos risco de cair na repetição e na banalidade. Porém, diz um de seus avatares, "há países em que a luta com a máscara de Blissett apenas começou, e espero que prossiga". O convite e a história do movimento estão em Guerrilha Psíquica, da Coleção Baderna.